segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Desistência milionária

19/10/2015 -  O Globo

Cento e oitenta anos depois de inaugurada, a travessia marítima na Baía de Guanabara é hoje um transporte à deriva. Na semana passada, quando se comemorava a data histórica — o serviço regular de barcas a vapor começou a operar em 14 de outubro de 1835 —, veio à tona a informação que a concessionária CCR Barcas procurou o estado para propor a devolução da concessão, alegando desequilíbrio econômico e financeiro do contrato. Além de deixar o serviço no meio do caminho, a empresa quer ser ressarcida pela disparidade no contrato, pelo aluguel emergencial de barcas enquanto não chegam as que foram compradas pelo estado ( até agora só foram entregues três de um total de nove) e pela reforma das estações Praça Quinze e Arariboia, que teria consumido R$ 45 milhões. Segundo fonte do primeiro escalão do governo ouvida pelo GLOBO, o valor pretendido seria em torno de R$ 500 milhões.

O secretário estadual de Transportes, Carlos Roberto Osorio, confirma que a CCR Barcas já manifestou a ele a intenção de fazer "uma solicitação” ao governo. Osorio, no entanto, diz que ainda não recebeu esse documento com o valor. O pedido que ele afirma estar em suas mãos é o de destrato do contrato de forma amigável, alegando não só desequilíbrio econômico- financeiro como também uma decisão estratégica da empresa. A proposta está sendo avaliada pela Procuradoria Geral do Estado, pela Secretaria da Casa Civil e pela Agência Reguladora de Transportes Públicos ( Agetransp).

— De qualquer forma, o fato de a empresa pedir ressarcimento não quer dizer que o governo vá aceitar. Vamos avaliar. — ressalta o secretário, que esta semana se reunirá com a presidência da CCR Barcas.

Formado por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa ( empreiteiras às voltas com a Operação Lava- Jato) e Soares Penido, o grupo CCR assumiu o serviço há três anos, depois que os gestores anteriores decidiram abandonar o barco, em meio a prejuízos e uma enxurrada de reclamações de usuários sobre o serviço. Na época, o consórcio também controlava a Ponte Rio- Niterói. Três anos depois, a CCR Barcas acumula um déficit de R$ 124,2 milhões. E a crise toma corpo num momento em que a concessão ( feita em 1998, quando o estado se desfez da antiga e ineficiente Companhia de Navegação do Rio de Janeiro, a Conerj ) não atingiu sequer a maioridade.


MENOS USUÁRIOS QUE METRÔ E TREM

Ao analisar o contrato recentemente, a Agetransp entendeu que havia desequilíbrio nas contas e recomendou que o estado fizesse investimentos no sistema para não ter que aumentar a tarifa. Com as finanças desidratadas pela crise financeira — o governo está gastando R$ 273 milhões na compra de nove barcas —, o governador Luiz Fernando Pezão, depois de anunciar uma nova licitação para o transporte, corrigindo os erros do modelo atual e dando mais garantias ao estado, adotou um tom mais conciliador. E informou que tentaria negociar com a CCR Barcas uma saída para o imbróglio.

Enquanto a solução para o impasse não desponta no horizonte, os números mostram que o negócio não vai bem. A concessionária opera hoje seis linhas de barcas: Praça Quinze- Praça Arariboia; Praça Quinze- Charitas; Praça Quinze- Paquetá; Praça Quinze- Cocotá; Ilha Grande- Mangaratiba e Ilha Grande- Angra dos Reis, sendo que 90% dos passageiros estão concentrados em apenas duas, as que ligam o Rio a Niterói. Diferentemente do que ocorreu com trens e metrô ( cujos serviços também foram concedidos pelo estado na década de 90), que viram mais que dobrar o número de passageiros desde a concessão ( 143% e 113%, respectivamente), a quantidade de usuários nas linhas entre Rio e Niterói aumentou apenas 35% desde 1999. E, nos últimos anos, quando se multiplicaram os engarrafamentos na Zona Portuária por conta das obras para as Olimpíadas de 2016, fato que poderia estimular o uso das barcas, esse número se manteve praticamente estável.

Mas, por que o quase bicentenário transporte na baía, ligando a antiga e a atual capital do estado, não consegue navegar num mar de almirante?

Na visão da concessionária CCR, as obras no entorno da Praça Quinze atrapalham o desenvolvimento do sistema. Em comunicado enviado aos acionistas do Grupo CCR no fim de 2014, a empresa relaciona a queda no número de passageiros naquele ano ao fechamento do mergulhão. "Esse local concentrava pontos de ônibus de diversas linhas municipais e intermunicipais com integração às barcas”, diz o texto. Uma fonte com acesso à empresa também destaca que o estudo feito pela CCR quando obteve a concessão previa, a essa altura do contrato, número maior de passageiros.

Além das falhas de operação, alvo de constantes reclamações por parte dos usuários, especialistas apontam os problemas no modelo de concessão e a falta de integração com outros meios de transporte como algumas das principais causas para a baixa adesão ao sistema e a alegada falta de lucratividade.

Para o engenheiro de transportes José Eugênio Leal, professor da PUC- Rio, desde o momento da primeira concessão já se sabia que as barcas eram deficitárias. O sistema foi vendido como um todo, inclusive com as dívidas. O relatório que preparou a modelagem da privatização traz indícios dos problemas para fechar as contas. A Conerj foi vendida com um passivo trabalhista estimado em R$ 7,8 milhões, além de dívidas fiscais de R$ 2,1 milhões. Leal cita as deficiências na integração com outros modais e a baixa taxa de ocupação fora dos horários de pico como fatores relevantes para os problemas na operação:

— No horário de pico, provavelmente o sistema se paga. Fora do pico, está longe de se pagar. Seria mais viável se fosse possível pegar um ônibus, a barca e outro ônibus. O problema é que o estado não conseguiria arcar com esse custo do subsídio na tarifa ( do bilhete único).

De acordo com o engenheiro de transportes Alexandre Rojas, professor da Uerj, um alento para as barcas pode ser a extensão da malha do metrô, prometida por Pezão:

— Quando o metrô chegar à Praça Quinze, saindo da Carioca, aí as barcas poderão ser viáveis.

BILHETE ÚNICO PARA TRÊS TRANSPORTES

Professor da UFF, Ilton Curty ressalta que as barcas, por serem um sistema de alta capacidade, precisam de muitas pessoas circulando. Em um estudo que analisou o trecho Rio- Niterói, Curty detectou uma taxa de ocupação de 32%, abaixo de cidades como São Francisco, nos Estados Unidos, e Lisboa, em Portugal.

— Nos horários de pico, elas ficam lotadas, trazendo desconforto para os usuários. Mas em outros horários sobra espaço.

O professor Luiz Eduardo Brandão, da PUC- Rio, desenvolveu um estudo de demanda em que um único bilhete pudesse ser usado em um ônibus em Niterói, nas barcas, e em outro coletivo no Rio:

— Isso aumentaria a demanda e ajudaria na viabilidade do contrato.

O processo formal para uma nova licitação foi aberto no fim da semana passada na Secretaria estadual de Transportes.

ROTINA DE TRANSTORNOS

A chegada do Grupo CCR à administração do serviço de barcas, em julho de 2012, não significou o fim dos problemas que historicamente atingem o meio de transporte. Nem o catamarã Pão de Açúcar, o mais novo da frota, que passou a faz er a travessia Rio- Niterói em março deste ano, escapou das estatísticas de transtornos. No dia 5 de agosto, ele apresentou um defeito, e o resultado foram filas que ultrapassavam a estação e se estendiam pela Praça Arariboia, em Niterói. Outras quatro embarcações da concessionária fizeram a travessia até que o catamarã pudesse voltar à frota.

Pouco mais de três semanas antes, na manhã do dia 16 de julho, a barca Boa Viagem se chocou contra uma pilastra do atracadouro, ao lado da estação Praça Quinze. Ao menos 13 pessoas ficaram feridas e foram levadas ao Hospital Souza Aguiar, com suspeitas de fraturas. No mês seguinte, a concessionária informou que iria indenizar as pessoas que se machucaram no acidente.

No início de maio, outro trecho administrado pela CCR, a linha Cocotá- Praça Quinze, teve as atividades suspensas por mais de dez dias após a embarcação ter batido na plataforma da estação, no dia 7. Após o acidente, todos os passageiros só foram resgatados após mais de duas horas de trabalho do Corpo de Bombeiros, com o auxílio de lanchas, botes salva- vidas, escadas e cordas.

Desde que assumiu o serviço, em julho de 2012, a CCR foi multada cinco vezes pela Agetransp, agência reguladora dos transportes, com punições que somam cerca de R$ 1,5 milhão. O valor acumulado em pouco mais de três anos representa cerca de 30% dos R$ 4,9 milhões em multas aplicadas desde a privatização do transporte aquaviário, em 1998.

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