sábado, 19 de janeiro de 2013

Hidrovias, ferrovias, sem um novo olhar

Hidrovias, ferrovias, sem um novo olhar

13/01/2013 - O Estado de São Paulo

O sucateamento pós-privatizações, em governos da segunda metade do século passado e início deste, e a concorrência desleal do transporte rodoviário subsidiado levaram ao quadro de hoje.

Parece difícil de acre ditar, mas um dire tor da Associação Brasileira de Recur sos Hídricos anun cia que estão sendo preparadas licitações de obras para tornar viáveis hidrovias nas Bacias Teles Pires-Tapajós e Araguaia-Tocantins (Estado, 15/12/2012). O primeiro projeto já está debaixo de fortes ataques por englobar também a implan tação de várias hidrelétricas em áreas indígenas e de preserva ção permanente na Amazônia. O segundo some e ressurge de tempos em tempos, apesar dos fortíssimos argumentos que têm sido invocados para mos trar seus inumeráveis e insupe ráveis problemas.

São muitos os cientistas que têm mostrado ao longo dos anos a inconveniência de implantar uma hidrovia no Araguaia. Rio de região ainda em formação, o Araguaia nem sequer tem leito navegável permanente - pois es te se desloca de ano para ano, com a movimentação de sedi mentos. Estudo da Universida de Federal de Goiás já demons trou que num único ano passam por Aruanã, ainda no Médio Ara guaia, nada menos de 6 milhões de toneladas de sedimentos, vin das desde a região de nascentes, onde continuam a se formar e se expandir gigantescas voçorocas (agravadas pela erosão decor rente da formação de pastagens, canaviais e culturas de soja). Im plantar uma hidrovia nesse rio exigiria escavar e isolar um canal permanente ao longo de cente nas de quilômetros.

Quanto custaria? Onde se de positariam os sedimentos retira dos e os que viessem depois? Qual o preço da manutenção? E o preço do transporte, já que as cargas exportadas do Centro-Oeste teriam de ser desembarca das em certo ponto da margem, levadas por caminhão até o lugar em que seriam repassadas para a ferrovia de Carajás e de novo de sembarcadas e reembarcadas no Maranhão?

Com tudo isso, também se anularia, pelos custos, a grande vantagem: permitir que safras brasileiras chegassem ao Atlânti co - e daí à Europa e à Asia - a preços inferiores aos dos produ tos norte-americanos.

Isso ainda é possível com uma Ferrovia Norte-Sul. Mas quando se passa a esse capítulo das ferro vias, as surpresas não são meno res. Depois de décadas de esque cimento, anuncia-se que elas te rão agora investimentos federais de R$ 25 bilhões entre 2013 e 2016, aos quais se somarão R$ 50 bilhões de empreendimentos pri vados. Talvez consigamos assim nos redimir de tantos pecados desde que a Norte-Sul teve sua primeira licitação embargada (com toda a razão) em 1987, por causa de irregularidades na licita ção do governo federal. Só que se confundiu o acessório - as irregu laridades - com o principal - a obra em si. Mas, na melhor das hipóteses, essa ferrovia só estará pronta no final de 2014, segundo anunciou a presidente da Repú blica. Desde 2007 já consumiu R$ 6 bilhões e só tem 15% do traje to pronto.

Não é só a Norte-Sul que sofre com percalços, desonestidades, etc. A Transnordestina, iniciada em 2006 e prevista para 2014, ao custo de R$ 4,5 bilhões, não será completada no prazo de 2014 (Estado, 31/12/2012). O consór cio que nela trabalha agora prevê custo de R$ 8,2 bilhões e quer um adicional, que o governo federal não aceita. E com isso se retar dam as ligações do Porto de Suape, no Maranhão, e do município de Eliseu Martins, no Piauí, a Sal gueiro e ao Porto de Pecém, no Ceará - o caminho para escoa mento de safras em direção ao Hemisfério Norte, com as mes mas vantagens da Norte-Sul. Mas os técnicos dizem que, no ritmo atual das obras, elas só se concluirão em 2036, já que ape nas 345 dos 1.728 quilômetros previstos estão prontos.

É quase impossível para as pes soas mais novas imaginar que no Brasil, há mais de meio século, cargas e pessoas se deslocavam quase somente em comboios fer roviários, de norte a sul. Como pensar que tínhamos até ramais ferroviários eletrificados? Em 1958 o País ainda tinha 38 mil qui lômetros de ferrovias, que come çaram a ser sucateadas nos go vernos a partir da década de 60, principalmente para favorecer a nascente indústria automobilís tica. Hoje tem 28.600 quilôme tros, a maior parte ociosos du rante quase todo o tempo, pois apenas 4 mil são modernos. É o que restou de um sistema inicia do no Império, em 1852, com uma concessão feita ao barão de Mauá, por 70 anos.

O sucateamento pós-privatizações, em governos da segunda metade do século passado e iní cio deste, e a concorrência des leal do transporte rodoviário subsidiado levaram ao quadro de hoje, quando se anuncia uma retomada de investimentos que chegaria a R$ 75 bilhões entre 2013 e 2016 (Estado, 4/9/2012). Mas a grande atração parece con tinuar sendo o trem-bala Rio-Campinas, que, só ele, custaria R$ 27,6 bilhões, segundo a Agên cia Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Tudo isso seria parte do investimento total de R$ 401 bilhões em infraestrutura, com destaque para os setores de enèrgia elétrica (R$ 158 bi lhões), telecomunicações (R$ 74 bilhões) e transporte rodoviá rio (R$ 53 bilhões).

Mais uma vez é preciso insis tir que falta a definição de estra tégia nacional para os novos tempos em que se vive no mun do - onde os problemas de cli ma, energia, ambiente, alimen tação e outros estão entrelaça dos e exigem posturas adequa das às novas situações. A sensa ção que fica, ainda hoje, é a de que continuamos a viver uma mistura dos governos jusceliniano e janista, com ênfase absolu ta em "desenvolvimentismo" e "política externa independen te". Não é preciso discutir mui to para concluir que os tempos são outros, como são outras as exigências prioritárias para um mundo conturbado, complexo e mutante. Nele o Brasil pode vir a ter condições excepcio nais, graças aos fatores privile giados de que dispõe - territó rio, recursos hídricos, biodiver sidade, possibilidade de matriz energética limpa e renovável. Basta olhar o recém-publicado atlas Amazônia BajoPresión (edi tado pela Rede Amazônica de In formação Socioambiental Geor- referenciada e coordenado por Beto Ricardo, do Instituto So cioambiental) para ver que só na Amazônia brasileira esses fa tores são imensos - mas já sob ataques em muitas frentes.

Fonte: Washington Novaes - O Estado de S. Paulo